quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Corsário do Rei- O Musical, por JSouza

Alguns anos depois, havia conseguido um emprego. Bom, não era bem um emprego normal, mas era um emprego. Trampava de zumbi no Túnel do Terror. Minha função era levantar do caixão e meter uma pá na cabeça dos clientes. Foi aí que conheci outros monstros, aliás, atores profissionais. Henrique, que era o Drácula e Rosângela, que era a Louca. Essa última tinha uma beleza impressionante, mesmo maquiada. Enfim, um dia inalei muita fumaça e desmaiei. O patrão filho da puta me demitiu.
          Passaram-se os meses e algo me chamou a atenção, não sei se foi um anúncio ou um telefonema de Rosângela. O fato é que havia uma vaga no elenco de O Corsário do Rei, do Chico Buarque de Holanda.

Resolvi fazer um teste, mesmo sabendo que as minhas chances eram escassas.
Tratava-se de um musical, portanto, haveria um teste vocal e de interpretação. O diretor era Ernani Poeta, um tipo magro e muito alto. Obviamente, o teste de canto foi um fracasso. Mas, eu consegui um papel. Uma pontinha? Não... Simplesmente o antagonista da peça: o Capitão dos Piratas.
          E lá estavam meus antigos companheiros do Túnel e outros atores bem jovens. O Corsário do Rei era um skatista playboy e a mocinha era uma loira bem atraente. Ensaiamos durante três meses. Antes de cada ensaio, havia um relaxamento. Podia-se fazer qualquer coisa, desde que ficasse de olhos fechados. Um dia alguém me beijou. Era Rosângela. Depois do ensaio, perguntei qual o motivo: ela disse que era um beijo técnico e nada mais. Estava apaixonado.
No começo não entendia nada das letras de Chico Buarque de Holanda, mas ao poucos fui compreendo cada cena e me emocionava sempre.
E, assim, fui me soltando e interpretando cada vez melhor. Até minha voz melhorou. Aquele musical era uma obra de arte.
          Havia muita diversão naquela peça: as cenas no boteco onde as prostitutas sentavam no colo dos piratas eram ótimas. Depois do ensaio, íamos para o centro beber e cantar sambas de Elis Regina. Rosângela voltava para os seus filhos e me ignorava. Passei a encarnar o personagem e realmente me apaixonei pela mocinha. No bar, ela estava beijando um dos bailarinos da peça: um negro de olhos azuis. Não esquentei, pois o cara era meu amigo. Voltei a sair com Rosângela e me declarei, em frente à CCMQ (Casa de Cultura Mário Quintana, em Porto Alegre).
Ela disse que também gostava de mim, mas eu não tinha condições de sustentar os seus filhos. Acho que eu morri ali, no meio da Andradas.
          A peça ia estrear, mas faltavam os figurinos, que seriam doados por uma escola de samba. Ernani disse que não tinha rolado e deveríamos "improvisar".
Aí, houve um racha: metade do elenco aceitou numa boa e a outra se empeceu. Como meus amigos estavam na segunda metade, eu fiquei com eles.
Mas, o caro diretor nos demitiu todos. O musical estreou com Ernani fazendo o meu papel. Estávamos na primeira fila. Eu resolvi tomar uma atitude: processá-lo. Todos os meus amigos foram contra, pois, "atores não processam diretores". Ernani me ligou e disse que aquilo iria prejudicar seu processo de adoção.
Fizemos um acordo e acabamos tomando uma cervejinha na André da Rocha.
Nunca mais procurei Rosângela e nunca mais entrei num teatro.

Este foi mais um surpreendente relato do cultural e bizarramente erudito Jerônimo de Souza.

Edição, fotos e destaques em negrito: eu mesmo, ué! (ANDF)

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